Tenho recebido cada vez mais questões sobre orientação sexual que se intersetam com a noção de fluidez sexual. Por esta hora a maioria das pessoas já se cruzou com a noção de “género fluido”. Género fluido implica que a pessoa não sente que a sua identidade de género é fixa, ou seja, o que género com que mais se identifica pode alterar-se ao longo do tempo ou dependendo do dia. Pode ser masculino, feminino, ambos ou nenhum destes. Há quem empregue também a noção de fluidez à expressão de género: a forma como a pessoa se apresenta à sociedade, que pode ser diferente da identidade de género. Tudo isto já tem bastante complexidade, mas, pelo menos em alguns círculos, vai sendo aceite e integrado nos discursos e nas políticas. Já a ideia de que a nossa orientação sexual pode ser mutável (fluida), não tanto.
As razões por que tendemos a encarar a orientação sexual como algo definitivo são, francamente, válidas. A História contínua de opressões e violências sofrida pelas pessoas não heterossexuais forçou a que estas, primeiramente que tudo, lutassem para que as suas preferências e comportamentos sexuais fossem vistos como “naturais”, como algo com que nasceram e sobre o qual não tiveram escolha, como qualquer característica física ou genética. Lembremo-nos que em algumas partes do mundo os “atos homossexuais” são ainda criminalizados, uma realidade que era também a da Europa no início do século XX. É também no século XX que vemos uma transição da criminalização destas sexualidades para a sua medicalização. No novo paradigma as pessoas deixam de ser culpadas, para passarem a ser curadas. É só nos 80 é que assistimos à remoção do diagnóstico de homossexualidade dos manuais de classificação médica.
Em resumo, da prevaricação passamos à doença e da doença à “naturalidade”. As sexualidades são finalmente vistas aos olhos da lei e da medicina (não dos costumes) como formas legítimas de desejarmos e estarmos com outres. Orientações intrínsecas, biológicas, eternas. Uma visão do mundo a que os académicos gostam de chamar “essencialismo”.
Um problema: não creio que a orientação sexual nasça connosco; nunca se conseguiu identificar uma predisposição genética para a homossexualidade e; o corpo de conhecimento acerca de orientações sexuais fluidas, mutáveis ao longo da vida, é cada vez maior.
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Entende-se por fluidez sexual a capacidade de adaptarmos a nossa sexualidade a determinado contexto ou circunstância. Implica que possamos sentir desejo e atração por pessoas que podem não corresponder à orientação sexual com que nos identificamos. Estes sentimentos podem ser temporários ou duradouros e muitas vezes deixam-nos a questionar algo sobre nós que consideramos fixo. Por outras palavras, a fluidez sexual é uma predisposição para a flexibilidade sexual que nos permite que em algum momento ou momentos desejemos sexualmente pessoas de um género que não nos atrai normalmente ou que talvez nunca nos tenha atraído (ou volte a atrair).
A investigação mais relevante sobre este fenómeno tem sido produzida pela Lisa Diamond, que, entre outras coisas, acompanhou as trajetórias de uma série de mulheres durante 10 anos. Concluiu que muitas destas não exibiam um padrão consistente de atração sexual e pareciam mudar a orientação sexual com que se identificavam ao longo da vida. Talvez devido a estes dados e ao facto de ser mais frequente que as mulheres se identifiquem como bissexuais em comparação com os homens, pensou-se que a fluidez sexual ocorresse apenas entre estas. Hoje sabemos que não é assim. No livro Mostly Straight, que condensa a investigação de Ritch C. Savin-Williams, são apresentadas as narrativas de vários jovens que, apesar de serem heterossexuais, sentem desejo sexual (e até romântico) por homens em algumas circunstâncias. Não obstante, a literatura continua a encontrar mais manifestações de fluidez sexual entre mulheres. Há várias razões para isto, mas não é difícil intuir que se relacionam quase todas com a construção (tóxica) da masculinidade.
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Espero por esta altura já ter conseguido transmitir que o conceito de fluidez sexual põe em causa as noções clássicas (binárias) de orientação sexual, que postulam um padrão estável de desejo sexual e romântico por pessoas do mesmo sexo (homossexualidade), do outro sexo (heterossexualidade) ou de ambos os sexos (bissexualidade).
Apesar de para muitas pessoas a experiência sexual ao longo da vida corresponder à definição mais ortodoxa de orientação sexual, ou seja, a uma preferência sexual e romântica cristalizada, não descreve a experiência de toda a gente. Atrevo-me a dizer, aliás, que à medida que formos desconstruindo as sexualidades, que descreverá a experiência de cada vez menos pessoas. Sim, conservadores deste mundo, aquilo que mais temem tornar-se-á realidade: quanto mais educarmos para a diversidade e fluidez, mais queer vai ser a criançada. E é tão bonito.
Eu não estou a dizer que somos ou seremos todes bissexuais, mas espero, com o tempo, que possamos navegar a fluidez sexual com menos confusão e menos estigma. (Aliás, se abolíssemos a noção de género, a noção de fluidez deixaria de fazer sentido). Experimentar fluidez sexual não significa que sejamos bissexuais, nem põe em causa a nossa orientação sexual “prévia”. Claro que nos pode levar a integrar informação nova sobre nós ou convidar-nos a explorar outras possibilidades. No entanto, também podemos ficar exatamente no mesmo sítio. O importante a reter é que a orientação sexual não prevê a totalidade dos desejos que algumas pessoas vão sentir ao longo da vida, apesar de prever de muitas.
Pessoalmente, considero a noção de fluidez sexual muito útil, mas tento utilizá-la com cautela. O facto de a orientação sexual de algumas pessoas depender do contexto, ou seja, poder sofrer alterações, não implica que possamos mudar a orientação sexual de alguém, até porque sabemos que as tentativas de o fazer não visam o bem-estar das próprias e sim a conformidade com normais sociais e religiosas. As atrocidades que ainda se cometem com o objetivo de reconverter pessoas LGBTQ explicam a apreensão da comunidade e da academia em abandonar visões essencialistas da sexualidade. Se ser LGBT é tão natural como ser hétero, se não implica escolha nem culpa, torna-se mais fácil proteger e apoiar estas pessoas nos serviços e nas instituições. Mas e se a sexualidade não for natural e for antes fluida, se depender da construção e não da biologia?
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