Este não é o tipo de texto que costumo escrever e nem compreendo exatamente a minha motivação para fazê-lo. Não sou uma pessoa de reações, muito menos quando podem ter impacto na comunidade de que faço parte. Sou uma pessoa que lê 150 artigos (passo o exagero) antes de formular opiniões publicamente, mesmo quando o meu coração já sabe no que acredita. Reflito sempre antes de responder a questões e nada do que escrevo o é sem intenção.
Mas, hoje, é tudo reação. Estou a tremer desde que li que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos reverteu Roe vs Wade, a lei que protegia as pessoas que precisavam de fazer interrupções da gravidez nos Estados Unidos. Estou em choque.
Não é difícil de adivinhar que já fiz uma interrupção da gravidez. Um aborto, essa palavra dura e feia. Era adulta, tinha uma situação financeira estável, um companheiro apoiante e todas as outras circunstâncias que me possibilitariam ter uma criança. Mas eu não queria (ou não tinha a certeza). Quando descobri que estava grávida a primeira coisa que disse em voz alta foi “foda-se”. Desatei a chorar, faltei ao trabalho e fui ver a minha médica de família. Foi em 2018.
Lembro-me da primeira vez que pensei sobre o aborto. Tinha 11 ou 12 anos e já tinha o período. Foi em 1998, pela altura do primeiro referendo para a despenalização do aborto em Portugal. Lembro-me da minha mãe estar a falar ao telefone com uma amiga e de a ouvir dizer “que ganhe o sim, porra!”. Para mim ficou claro, as mulheres deviam poder fazer abortos. Mas não foi a opinião popular. Anos volvidos, em 2007, ganhava o sim, com o meu voto, mas não com o voto to meu namorado da altura. Foram tempos de discussões pesadas que acabaram comigo a prometer que nunca faria um aborto de um filho seu (nem vou tentar processar isto agora). A minha promessa era verdadeira, mas vinha acompanhada com um sentido de alívio brutal por ter adquirido este direito. Pareceu-me tudo de uma grande simplicidade: na presença de uma gravidez indesejada, qualquer mulher pode honrar a sua escolha de não prosseguir com ela. Percebi quando engravidei que não há nada “simples” neste processo. Vou tentar explicar.
No meu centro de saúde a minha médica estava acompanhada de uma interna. Perscrutaram-me ambas atentamente. Disseram-me “se não tem a certeza vamos entrar com o processo para a interrupção”. Explicaram-me que como eu era da área do São Francisco Xavier, onde o serviço de ginecologia e obstetrícia se declara como objetor de consciência (obrigada ao diretor de serviço, Dr. Fernando Cirurgião), que teria que lá ir levantar um documento para ser encaminhada para a Clínica dos Arcos, um estabelecimento privado. Sim, o Estado confere um direito, mas os serviços do Estado podem negar-se a oferecê-lo; o que significa que o Estado tem que financiar o Privado para fazer valer os direitos por si conferidos. Lá fui buscar o documento. Não sabia se ia ter que ver algum médico ou enfermeiro ou quem trataria do processo. Não sabia o que iam pensar de mim ou dizer-me. Não disseram nada. Limitei-me a levantar um envelope no guichet do serviço. Até lá, estive numa sala de espera com uma senha na mão sem saber que espera era a minha. Lá fui à Clínica dos Arcos, com os meus direitos na mão. Na esquina contrária ainda hoje se vê uma fachada com a cara da madre Teresa de Calcutá. Ninguém tentou dissuadir-me, mas encarei madre Teresa todas as ocasiões em que me dirigi à clínica.
Vou saltar algumas partes do processo. Falei com enfermeiras, médicas, psicólogas. Para minha sorte ou azar, conhecia pessoalmente as duas psicólogas ao serviço (o mundo da sexologia é pequeno). Não me lembro das consultas, mas lembro-me da sala de espera, cheia de mulheres esvaziadas cujas histórias eu desconhecia. Ao mesmo tempo, não conseguia deixar de sentir que éramos todas a mesma. Mulheres com os seus companheiros (da vida, de uma noite?), com as suas mães, com as suas amigas, com as suas irmãs. A única pessoa que quis ter comigo foi a minha mãe, mas calhou que no dia que lhe ia contar me contou ela, entusiasmada, que uma grande amiga minha de infância estava grávida. Não lhe consegui roubar o entusiasmo, apesar de ter a certeza de que me apoiaria no que precisasse. Levei o meu companheiro, mas não foi a mesma coisa. Senti-me muito sozinha. A culpa não foi dele, foi do feminismo. Talvez esta seja das suas maiores falácias: ao conferir às mulheres as decisões sobre o seu corpo, também lhes transfere a responsabilidade total de uma gravidez que é partilhada. É um problema sem outra solução. É complexo e é solitário, mesmo quando estamos bem acompanhadas.
Estava de 7 semanas à data da minha cirurgia. Avisaram-me que se tivesse alguma complicação (sangramento preocupante, dor e o que mais) para não ir a São Francisco (“já ouvimos histórias horríveis”). Deram-me um comprimido para “ajudar a descolar” ou o lá o que era. Estava nua debaixo de uma bata de hospital, deitada numa maca. Estava no sítio errado. Comecei a ouvir a fornada anterior de mulheres a chegar ao recobro. Estavam drogadas, falavam da dor que sentiam, de outros abortos, das suas histórias. Agarrei a minha barriga e não engoli o comprimido. Deixei-o o ficar na bochecha, tentando não salivar para evitar a ingestão do que quer que fosse aquilo. Levantei-me e dirigi-me à sala de operações. Desatei a chorar, disse que não conseguia. Não parei de pedir desculpa. A auxiliar abraçou-me e disse que não fazia mal, que era muito difícil, que era assim mesmo. Chamou a psicóloga. “Então Leonor, o que se passou?”. Ainda hoje não sei. Fui para casa. Aliás, fomos para casa, eu e o meu companheiro, julgando que íamos avançar com a gravidez. Encontrei uma amiga, que ficou entusiasmada (“Eu decoro o quartinho!”). Fui dormir a sesta (porque estar grávida é estar cansada). Acordei, falei com uma amiga que vive no Brasil, começo a explicar-lhe. “Foda-se, não quero ter filhos”. É que eu ter fugido da Clínica dos Arcos não significava que eu queria avançar com a gravidez. Eu só não queria fazer um aborto. Ninguém quer.
Levei a minha ambivalência até ao limite máximo. Marquei mais uma cirurgia e voltei a desmarcar (desta vez fi-lo por telefone). Foi à terceira, no último dia legalmente permitido. Sem certezas.
Até hoje, não me arrependo, mas foi das experiências mais violentas da minha vida. Não há nada de simples ou direto em fazer um aborto. Eu sei-o desde 2018, mas há quem não saiba ainda. Não há aborto sem a inevitabilidade da culpa e do medo. Culpa por abortar quando há quem tente engravidar, culpa por não “dar” netos aos meus pais, medo de me arrepender, medo de ser julgada, medo de sofrer violência. Culpa de ser mulher. Medo por ser mulher. Bem sei que não são apenas as mulheres que fazem abortos. Não imagino a violência que pode sentir um homem trans com uma gravidez indesejada. A mim, estar grávida, deixou-me com a certeza de que sou mulher. A um homem trans pode trazer o sentimento contrário. Não sei. Sei que a mim, nada me fez sentir tão mulher como fazer uma interrupção da gravidez. Não foi a gravidez, foi o aborto que me fez sentir mulher. E ser mulher é ter medo e é ter culpa. Eu, neste dia triste e pesaroso, tenho sobretudo medo. Sei o que aí vem e não é bonito.
Não sei com que objetivo escrevo isto. Não tenho uma intenção clara, contrário ao que é costume. Não o faço necessariamente por alguém a não ser por mim. Talvez procure validação e apoio (sei que também vou receber violência, mas eu aguento). Talvez o faça porque quero sentir-me outra vez uma com todas as pessoas que já fizeram ou virão a fazer abortos. Talvez queira tão somente contar à minha mãe, a quem vou ter que ligar antes de publicar isto. Talvez me ajude a mim ou a outras pessoas. Talvez não sirva para nada.
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